Simples assim


Angustiado, Bentinho (em Dom Casmurro), fala sobre seu desejo de unir as duas pontas da vida. Em algum momento a gente olha pra trás e percebe que poderia ter sido mais flexível, menos exigente, mais generoso, menos crítico. Concluímos que se juntarmos todas as horas gastas com tempo perdido, poderíamos ter tido mais conquistas. Tudo bem... Vale o aprendizado e o desejo de ressignificar o agora, unindo as pontas, fazendo diferente, aproveitando a maturidade e os passos rumo à sabedoria pra reinventar posicionamentos.

Enquanto escrevo, lembro do meu marido listando, noutro dia, a simplicidade como o maior valor da sua vida. Confesso que a fala dele me fez repensar. Achei corajoso e libertador e estou ensaiando pra descomplicar um pouco.

A vovó Deira me ensina também. A cultura e a época em que nasceu justificam uma submissão excessiva (na minha visão, claro). Mas, em contrapartida, sua simplicidade a levou a uma grandeza humana que nem sei qualificar. Ela doa sem reter, da garrafa de café compartilhada com o vizinho ao pagamento a mais para o jardineiro que está precisando. Não importa o que vai servir, providencia com fartura. Supera as limitações físicas pra deixar a casa em ordem para as visitas e ignora as dores nas pernas pra visitar os parentes da redondeza. Às vezes pergunta as mesmas coisas, mas sempre ouve com atenção. Se compadece, ora e age. Age sempre, ainda que seja providenciando almoço de domingo pra família ou pagando a farmácia pra algum conhecido que está sem condições.

Tenho concluído que a segunda ponta da vida está intimamente ligada à simplicidade e eu acho que, por um tempo, eu a perdi em meio a tantas outras… A vida se encarregou de me alertar sobre isso: Não foi à toa que casei com um homem cujo maior valor é a simplicidade e tenho uma matriarca que sabe valorizar o que é essencial.

O caminho da simplicidade (da segunda ponta, da ressignificação do passado e da vivência plena do presente) passa pela gratidão ou contentamento e sobre ele, Anselm Grün finaliza este texto, dizendo que precisamos "parar de exigir certos frutos da nossa árvore, baste os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia."

Sobre o que permanece





Eu sempre gostei de nutrir relações e, depois de um tempo, aprendi que é fundamental selecionar quem vai seguir na vida com a gente. 

Ainda que eu quisesse ser aprovada em alguns grupos, não abria mão de estar com quem realmente fizesse diferença pra mim. Entendi que não dá pra fazer morada em qualquer ninho e que é preciso também preparar a casa interna pra receber aqueles que a gente elege como amigos.

Com a Gabi foi assim. A parceria profissional, tão apurada, consolidou-se também fora dela. Ela me trouxe leveza, bom humor e uma maneira criativa de ver a vida. Eu devolvi um olhar altruísta e a melancolia sedutora que, na verdade, ela sempre teve.
 
Damos gargalhadas juntas e debochamos pra dar conta da seriedade das coisas. Mas, já tivemos tempos de silêncio, pequenas implicâncias e projeções. E, nesse caminho, aprendemos juntas a abandonar as reações infantis. 

As nossas famílias também se misturaram, por semelhança e amor. Algumas vergonhas se esbarraram e, sem perceber, fomos curadas.
 
A Gabi me ensinou que a única vida que temos é a real e que é libertador vivê-la, bem assim, como ela é. E, por isso, os melhores insights podem acontecer numa conversa de wathsapp ou numa visita agendada. Tanto faz. Importa é o que sobra do encontro e da troca. Importa é o que, de fato, se vive da vida.
 
Já se passaram 8 anos e quero mais 80 do lado dela. Mas, que não passe disso, senão vai "ficar puxado" pra gente, como gostamos de dizer.
 
Ela está na lista de pessoas que me amam e eu acredito; e eu desejo que a plenitude a alcance em todos os momentos pra que continue comprometida em ser, integralmente, quem é.

Companheiro de pesca





Foi no fim do domingo. E contextualizar é importante porque geralmente os fins de domingo são regados a tédio ou tristezinha passageira. Era pra ser uma conversa qualquer, um papo pra acompanhar o café da tarde, servido impreterivelmente no mesmo horário.

Ele me olhou mais piedoso do que de costume, os olhos marejados do alto dos seus 74 e a delicadeza, que lhe é peculiar, multiplicou-se em cinco. Confessou que o amigo estava adoentado, detalhou o quadro, as complicações e as poucas chances diante do diagnóstico ameaçador. Como sempre, não esqueceu nenhuma informação. No fim, respirou fundo, a lágrima quase caindo, e confidenciou: "Sabe, Lívia, ele foi o melhor companheiro com quem pesquei. Se a gente virasse a noite e nada de peixe, ele dizia, animado, pra pescarmos em outro lugar. Ele me ajudava a guardar a canoa e, se ela virava, era ele quem me auxiliava. Ele foi o melhor companheiro que já tive…"

Fiquei engasgada e quando pensei em abraçar meu sogro, ele emendou: "Amanhã vou visitá-lo novamente; passar a tarde com ele."

A prosa mudou de rumo quando os filhos chegaram com outros assuntos pra pauta. Mas, a conversa ficou aqui dentro por bastante tempo, me dizendo que na vida o menos importante é a quantidade de peixes que se pescou. Importa é pescarmos acompanhados (de preferência, com o melhor companheiro) e, em qualquer circunstância, ajudar a virar a canoa, ainda que pela última vez.

 

Foto: Bruna Ferencz

Gente que sabe nutrir




Aprendi desde cedo que comida é sinônimo de amor e, há duas semanas, às vésperas de uma consulta com a nutricionista, sonhei que chorava compulsivamente, implorando que ela não limitasse demais minha alimentação porque eu sofreria de inanição afetiva.
 
Pra mim, comida não precisa de requinte. É o preparo que faz a diferença. Aliás, a intenção de quem prepara. E, se de boa intenção o inferno está cheio, isso explica a asia provocada por alimentos mal preparados ou preparados com má vontade.

Nem a relação duvidosa de compensação anula o conforto interior de um café recém coado, de um arroz bem refogado, de um feijão cozido no dia ou de um frango caipira preparado com reta intenção. E desse último, o Sr. Ari era chef! Ele tinha o cuidado de levar sempre arrumadinho e fazer no almoço de domingo. Enquanto ficava pronto e aquele tempero perfumava a casa, ele tomava uma cervejinha e conversava mansinho. Carinhoso em tudo, gostava de servir a comida bem quente e quente era também o acolhimento que, sem saber ou, propositadamente, ele providenciava a cada frango caipira.

Ele se foi no último domingo e eu nem posso imaginar a dor da família, mas presumo ser imensurável. Consola-me ter participado de seus banquetes e saber que muito do que ficará é reflexo de sua disposição em nutrir de amor quem passou por ele.

*Texto escrito em 29/04/2014

Sobre a Lara e o lar


Ela é uma das pessoas mais fortes que eu conheço, especialmente porque toca na fraqueza (sua e dos outros) sem pudores demasiados.

A vida uniu a gente, mas sabemos que antes disso, Deus, que é pai, nos fez irmãs. Ele sabia que precisaríamos de um núcleo de amor específico pra construirmos nossas histórias.

Foram todas as fases juntas: da leveza (às vezes pesada) da adolescência, à maturidade que fomos conquistando. Na nossa amizade, o maior espaço é pro amor, que deixa a histeria, o drama, a euforia, a melancolia, os sonhos, os vícios e as virtudes aparecerem. Há discordâncias, tolerâncias e silêncios e houve também afastamentos necessários.

Na mitologia grega, Lara era o nome de uma deusa das águas, que teve um relacionamento com Hermes, a partir do qual nasceram os Lares, deuses domésticos, que protegiam as casas. Eu não tenho dúvidas de que, nesse tempo, em especial, você está construindo o melhor lar que poderia imaginar: o lar interno, abrigo seguro para si mesma e para os que você ama. Me sinto protegida nele. Por isso e por sua vida, obrigada!

Sonhando acordada

Hoje os meus sonhos me acordaram às 4 da madrugada. Sabe quando o sonho é tão real que você precisa acordar pra entender? Pois é... Nem as ideias do Jung me ajudaram desta vez e o incômodo persiste.

Eu tenho desejado 3 vidas pra realizar o que eu quero nesta e, por isso, até o processo físico do sonho me desperta.

Como lidar com o desejo de viver tudo (inclusive o que se perde com algumas escolhas), a pressa de concretizar e a realidade de que nem tudo é realizável ou realizado? E, por acaso, dá pra se proteger da loucura que essa angústia traz?

Eu não tenho nenhuma resposta, mas tenho algumas perguntas e um mal estar pra suportar. E acho, sinceramente, que é mais interessante assim.

Fora do padrão

E depois de um assunto chato, que não rendeu muita coisa, concluí que quando a gente decide que não vai mais fazer concessões, que pessoalmente são absurdas, simplesmente pra ser “legal”, os ambientes tornam-se menos confortáveis. 

É um desafio ser seletivo e ao, mesmo tempo, evitar a arrogância, eu sei. Mas, na maioria das vezes, a vida exige mais do que replicar sorrisinhos nos almoços de família ou concordar com um debate unânime apenas pra manter o título de miss simpatia. Se bem que fazer cara de paisagem ou silenciar também pode concluir algumas discussões.

Talvez nesses últimos dias eu tenha me sentido mais fora do padrão do que de costume e esteja feliz por não querer me encaixotar de novo. 

Pode parecer óbvio, mas escolher livremente o que se quer comer, onde se quer andar, com quem se quer estar, no que investir grana e energia... bem, isso é pra quem tem um compromisso real com seu desejo particular, que, claro, pode ser compartilhado (com quem se permite!). 

Quero aprender a simplicidade sempre, mas não me venha com os simplismos dos padrões. Eu respeito seu ponto de vista, mas, por favor, entenda de uma vez por todas: é possível que ele não sirva pra mim.

Alívio

Só quando você entende que não é à toa que se é melancólico, fleumático, colérico, sanguíneo, dramático, ansioso, claustrofóbico, hipocondríaco, fanático, exagerado, bobo da corte ou qualquer outra coisa que pareça socialmente um desajuste, é que se torna possível, de fato, respirar aliviado e falar em esperança. 

Isso porque aceitar a vida e não lutar tanto pra ser ou parecer melhor o tempo todo é exorcizar o pensamento empacotado de felicidade e viver de acordo com a sua justa medida. 

Sair da zona de conforto, enxergar o outro, desromantizar um pouco e “não ter que...” é consenso de quem quer mais da vida. Mas, encarna-la, seja lá como ela estiver agora, isso é comigo. Isso é com você. E com mais ninguém.

Demolição

Quando a pulsão de vida sai pela porta e as circunstâncias exigem uma capacidade de sobrevivência maior do que é aparentemente possível, o instinto de proteção cresce e começamos a construir estruturas pra resguardar o que entendemos ser vital. 

A dinâmica é animal mesmo: abrigos de resistência, que, infelizmente, não são sustentáveis.

Tenho descoberto que a arrogância é um ótimo mecanismo de defesa, uma parede bem grande, que isola muitas coisas e pessoas inconvenientes. Em contrapartida, aprendi também que se a parede cresce demais, nossos órgãos desfalecem porque não somos autossuficientes e porque, muitas vezes, os recursos que precisamos pra continuar estão com o outro. 

Resolvi derrubar a muralha e, milagrosamente, revivi. 

Prazer

Acordar às 7h e se preparar pra uma reunião no sábado pode parecer programa de índio ou mania de workaholic pro senso comum. Só que eu continuo aprendendo que o senso comum não tem o mínimo comprometimento com o meu prazer.

O estímulo pro gozo é particular, íntimo e construído. Feliz daquele que já entendeu que, no campo da satisfação pessoal, as fórmulas empacotadas e até mesmo comercializadas podem não dar certo. A “poção mágica” (que de sobrenatural não tem nada!) tem mais a ver com nosso DNA e com a história que escrevemos do que com receitas pré-fabricadas.

Viver fingindo orgasmos múltiplos apenas pra dizer que se tem prazer pode ser uma escolha arriscada de quem não quer correr riscos, quebrar protocolos, contrariar a unanimidade e olhar de verdade pra dentro. 

Acredito, inclusive, que a nossa insistência em representar o gozo pode estar associada à reprodução dos esquemas infantis ou mesmo à rejeição contínua do mal-estar. Cá entre nós, essa história de que “todo dia tem festinha lá em casa” é um discurso falso pra enfeitar nossas feiúras e as das nossas relações também.

É fim de semana, e não posso negar que o sábado ganhou uma cara melhor por conta da reunião. Sigo confirmando que meu prazer é real porque é legítimo “pra mim”. Se não for assim, é puro teatro... e, o pior: pra nenhum expectador.